Recente pesquisa feita pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) mostra que pouco mais de 4% dos brasileiros confiam uns nos outros. Há apenas um ano, esse índice era de 7%. Ou seja, parece que ninguém espera nada de ninguém por aqui. Esse resultado afeta fortemente a ideia de país solidário que desenvolvemos no nosso próprio imaginário e que se manifesta a cada tragédia provocada pela falta de capacidade de gerenciamento e fiscalização do poder público e que resulta em barreiras que rompem, casas que deslizam de morros, boates cujos tetos de espuma pegam fogo. Nesses casos, logo surgem os voluntários com fardos de roupas e água e com seus próprios corpos no barro ajudando os bombeiros a resgatar os cadáveres de incautos que não puderam contar com a competência de um gestor capaz de honrar os impostos que pagaram.
Confiar, como sei de meu minguado conhecimento etimológico, vem de ter fé, estar com fé, depositar fé em algo ou alguém. Fé é esperança em algo. Esperança vem de esperar, no sentido de aguardar algo que se crê que venha, como o amigo que marcou o encontro ou o dinheiro do serviço que foi feito, ou o atendimento médico no posto de saúde, ou a luz e a água na casa que se compra ou aluga, ou a escola e a segurança no bairro em que mora. Fé em D'us que Este não vai faltar. Não faltar no sentido de D’us socorrer quando houver urgência. Urgência que é o momento de não poder mais esperar. Desesperar. Momento de aflição. E nesse momento, confiar que algo ou alguém virá em socorro. E isso é tudo o que brasileiro não sente pelo outro, segundo a pesquisa.
No clássico dos anos 30, Raízes do Brasil, Sérgio Buarque compõe o conceito já tantas vezes utilizado, de que o brasileiro é um “homem cordial”. Curioso como parece um elogio, uma marca de identidade que gostamos de mostrar, como as covinhas no rosto de uma criança. O que o pai do Chico quis dizer, no entanto, é que o brasileiro age com o coração e isso quer dizer que o brasileiro quando faz, não é por obrigação determinada por uma regra comum, mas por algo que o toca, emociona. Ou, faz pelos seus, amigos e familiares. Como aquele prefeito que furou a fila, vacinou a esposa e depois, emocionado, disse que agiu por amor. Ou o governante que emprega o filho ou o irmão e diz “que se trata de um cargo de confiança e não há ninguém em quem eu confie mais do que na minha família”. Cordialidade. O assassino que chora quando ouve a voz da filhinha; o ditador que afaga carinhosamente a cabeça do cão de estimação; o corrupto preso que fica inconsolável diante das câmeras, porque está decepcionando os filhos. Somos, por outro lado, incapazes de esperar que as coisas aconteçam em razão de uma regra de funcionamento comum, de um combinado que não dependa de quem vai executá-lo. Que funcione porque foi assim que se convencionou e não porque alguém pediu um favor por amizade ou prometeu algo em troca, como uma ação entre parceiros.
Até para eleger, acreditamos que deve haver uma pessoa que é a “única" capaz de, e não um conjunto de ideias representados por um programa de um partido. A ideia de partido no Brasil acabou no início da segunda metade do século XIX, para frustração do Visconde do Uruguai. De lá para cá, a ideia de um projeto para o país tornou-se não mais do que uma desculpa para alavancar candidaturas personalistas alimentadas pela esperança de atendimento de urgências pessoais ou de grupos identitários. E todos, no poder, vão consolidando suas “bases eleitorais” por meio dos favores: o morro sobre o qual ninguém deveria morar torna-se então uma concessão do governante que atende a um pedido e libera “provisoriamente" até que outra solução seja encontrada. E o mesmo ocorre nas margens dos rios e em todos os lugares onde não é possível morar ou construir, e é assim também com todos os cargos que deveriam ter um especialista mas têm um correligionário porque alguém deu um jeitinho e atendeu a um pedido de alguém. Até que dê problema. E aí, espera-se que alguém dê um jeito. Ou desespera-se com as consequências. Crônica de tragédias anunciadas.
Na pesquisa do BID, os países nos quais as pessoas têm mais confiança umas nas outras e também nos órgãos coletivos são exatamente aqueles onde há Estado atuante e sociedade fortemente educada para a vida pública. Segundo a pesquisa, “a América Latina tem menor segurança em instituições, como o sistema judicial e nos militares e nas eleições". A fé no estado de direito é tida por 44,8% dos latino-americanos, ante 86,12% nos países membros da OCDE. Ou seja, nas democracias maduras, como a Alemanha, França, Grã-Bretanha, Suécia, Noruega, Dinamarca, entre outros.
A solução parece-me clara: precisamos desesperar. Precisamos assumir o sentimento de urgência e mesmo de fúria por mais transparência, previsibilidade e obediência aos pactos coletivos. Precisamos reafirmar nosso contrato social e, com os dentes arreganhados e os olhos injetados, dizer em alto e bom som: vamos fazer isso funcionar direito. Sem jeitinho e sem arranjo, sem desvio, conversa reservada, cartão corporativo e emendas parlamentares secretas, sem realocação de verbas da saúde, educação, ciência, proteção ambiental, sem um sistema eleitoral que facilite tudo isso, sem um modelo de ensino que sequestre a cidadania dos jovens.
Ao contrário do que se pensa, a saída não é nem o aeroporto nem o salão de festas do condomínio privado. É uma praça pública.
Brasileiros e brasileiras, desesperai-vos!
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
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