Como professor de História, sei que os fatos são sempre complexos, mas podem ser compreendidos quando conseguimos tecer os diversos fios das explicações que os compõem em uma trama razoavelmente firme e clara. Lembro-me quando, em 1989, o governo chinês jogou seus tanques sobre jovens cidadãos na praça Tiananmen. Houve uma forma de explicar aquilo. Quando leio sobre a reação do Sul dos Estados Unidos ao projeto de reconstrução do governo federal após o fim da guerra civil e da aprovação da Décima Terceira Emenda à Constituição, reação essa que acabou emplacando a tese do “iguais mas separados”, e que atrasou a conquista dos direitos civis dos negros norte-americanos em um século, lembro que também foi possível encontrar uma explicação.
Quando os nazistas, em 1939, iniciaram o projeto T-4, que vitimou quase trezentas mil pessoas com problemas mentais ou fisicamente inválidas, também foi possível achar a explicação para o que ocorreu. Quando Stalin e Mao Zedong condenaram milhões de seus concidadãos com políticas para acelerar a industrialização e construir um Estado militarmente poderoso, foi possível encontrar explicações para compreender isso. Quando houve a grande fome na Ucrânia, para gerar excedentes de alimentos para exportação e obtenção de dinheiro forte para financiar as máquinas da indústria e do exército soviético, o que vitimou mais de três milhões de ucranianos, enraizando uma aversão aos russos como só três milhões de mortos são capazes de provocar, isso também foi possível explicar e entender.
Explicar é tirar as peças de algo, ou seja, as dobras que dificultam vê-lo em sua extensão. Mas isso não significa, em absoluto, aceitá-lo e apoiá-lo, como todos os exemplos que citei acima e como vem acontecendo com a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin. Ora, é fato que há explicações para entender que Putin se sente pressionado pelo Ocidente aliado dos EUA, a OTAN etc. Isso é um fato compreensível e a Geopolítica, nesse caso, é bem didática. Basta olhar o mapa e perceber que os dezessete milhões, cento e trinta mil quilômetros quadrados da Rússia estão cercados por países "potencialmente perigosos", como a Letônia, a Estônia e a Lituânia, ex-membros da URSS e agora da Otan, além de antigos aliados da Rússia comunista, como a Polônia, República Tcheca, Romênia, Bulgária, quase todo o pessoal da antiga "cortina de ferro".
Também sabemos que a Ucrânia elegeu um presidente pró-ocidente, e parece que há uma disposição da maior parte da população - manifesta em ruidosas e gigantescas mobilizações de rua que acabaram derrubando o governo pró-Putin - em aproximar-se da zona do Euro e do escudo de segurança da Otan. E, enfim, sabemos que o presidente russo determinou que a Ucrânia seria a linha vermelha, o game over da expansão da influência ocidental em direção às suas fronteiras. E agora resolveu atacar. Curioso que o início da invasão foi há poucos dias, mas os defensores de Putin na internet já esqueceram que a justificativa dessa presença militar era para dar apoio às províncias de forte presença étnica russa, na região de Donbass, no extremo leste da Ucrânia. O que será então que as tropas russas estão fazendo tão próximas de Kiív, ao norte do país, quase na fronteira da Bielorrússia?
Como disse, explicações não faltam para justificar os fatos históricos. O impeachment da Dilma, lembram? Pedaladas fiscais. Mas uma explicação não implica em apoio, um sinal verde para que o fato passe incólume pelo crivo do julgamento individual e coletivo ao qual todos os fatos públicos estão sujeitos. E o julgamento, até este momento, na maior parte do planeta, incluindo Moscou e São Petersburgo, é de repúdio ao ataque das tropas russas que violaram um território soberano composto por um governo democraticamente eleito. Como lembrou o pensador israelense Yuval Harari, em artigo publicado no jornal The Guardian, “Putin já perdeu essa guerra”, porque não controlará o povo ucraniano e, a cada dia que passa, cresce o apoio mundial de governantes, intelectuais, atletas, artistas, cidadãos comuns ao direito de a Ucrânia existir como Nação e decidir o seu destino sem estar atrelada aos caprichos do governante russo.
Como professor de História, sei que meu papel é explicar os acontecimentos relevantes ao longo do tempo, baseando-me nos diversos fatos e evidências, construindo uma narrativa clara, didática, atraente e verosímil do passado que possibilite orientação temporal e ética de crianças e jovens, os construtores do futuro. Mas, como cidadão, meu dever é me posicionar e registrar meu repúdio às guerras e a esta guerra em particular. Minha manifestação é só uma voz, um só texto. A justificativa do meu posicionamento é simples: a violência não tem nada a ver com poder, mas com força; força que não tem nada a ver com bem comum, mas com vontade de domínio. Ou seja, delírios de um tiranete. Como alguns que infestam o meu planeta e, infelizmente, o meu país. Contra eles, ergo minhas barricadas de palavras e ideias. E resisto.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de Humanidades no Curso Positivo.
daniemedeiros.articulista@gmail.com
@profdanielmedeiros
**Artigos de opinião assinados não reproduzem, necessariamente, a opinião do Curso Positivo.
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